segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Sobre a ausência do luto e dos fechamentos - um conto

João nasceu no mês de Outubro de 1949, numa pequena cidade do interior do estado de São Paulo. Nasceu em um lar amoroso, no qual os pais, bastante zelosos, desdobravam-se em cuidados; preocupados com seu bem estar.
Quando completou quatro anos de idade, o pai do menino, dono de um pequeno sítio nos arredores daquela cidade, decidiu presenteá-lo com um bicho de estimação - um pequeno coelho branco, com pelos bem branquinhos.
Os olhos de João brilharam ao ver o bichinho diante de si. Ainda mais pela promessa de que seria só seu! Na mesma hora deu a ele um nome. Se chamaria ‘Bolinha’, afinal, ele se parecia mesmo com uma bolinha branca.
Todos os dias, logo ao acordar, a criança corria para procurar seu amigo peludo. Saía afoito de seu quarto, na direção da pequena varanda que ficava além da cozinha, procurando pela gaiola.

- Mãe, porque ele não pode ficar solto, que nem eu?
- Com você por perto, cuidando dele, pode. Abra a gaiola e brinque com Bolinha, mas assim que for para dentro, feche-o novamente para que não fuja. Ele poderia se machucar estando sozinho por aí.

Meses se passaram. E todas as manhãs era a mesma rotina: João pulava da cama e antes do café já estava lá, mexendo com Bolinha...

Porém, em certa manhã o coelho parecia mais quieto que de costume. João apalpava, mexia, empurrava e nada do bichinho se mover.

- Mãe, o Bolinha tá mole.
- O que foi, filho?
- Eu to empurrando e ele não quer se mexer.
- Seu pai logo chega pro almoço. Vou pedir para ele olhar se está tudo bem com o coelhinho, ta bem?

João ficou apreensivo. Será que Bolinha estava doente?
Chegada a hora da refeição, o pai do menino chegou para o almoço e logo João correu ao seu encontro para dizer que o Bolinha estava muito parado.
Após pequeno exame, a constatação: O bichinho estava doente. Mas nada comentou com o garoto. Puxou a mulher pelo braço, e, cuidadoso, cochichou no seu ouvido:
- Bolinha está doente. Não sei se vai ficar bom. Se algo acontecer esconda-o para que o João não veja o bicho morto.

A mãe concordou, pensando que poderia, assim, proteger o filho da tristeza.

Bolinha piorou e em dois dias não mais abriu os pequenos olhos vermelhos. Logo pela manhã a mãe de João, encontrando o bichinho morto na pequena jaula, sumiu com o coitado, escondendo-o no porão da casa. Depois, ela e o marido trataram logo de dar cabo do corpo, enterrando Bolinha distante dali.

Minutos depois João acordou, e, como fazia diariamente, correu para encontrar com Bolinha na varanda.

- Cadê o Bolinha, mãe?
A jovem senhora, abraçando o filho ternamente, explicou:
- Filho, ele não vai vir mais para casa. Foi morar no céu. Agora o Bolinha é uma estrela, querido.
- Uma estrela?
- É que ele estava muito doente e quando ficamos assim, Deus leva embora nosso corpo e viramos estrelinhas no céu.
Com lágrimas escorrendo pela face, João perguntou:
- Ele morreu, mãe?
- Não, filho. Ele virou estrela, entendeu?
O menino desabou num choro barulhento e comovedor.
O pai, vendo a cena, chegou perto da criança e, retirando-o dos braços maternos, falou, olhando nos olhos do pequeno:

- Seja corajoso, João. Você já é quase um homem. E homem não fica chorando pelos cantos, certo? Você nunca viu o papai chorando por aí. Olha, amanhã mesmo te trago outro bicho. Qual você quer?

Ainda soluçando, começou a enxugar os olhos. Pensou um pouco e disse:
- Eu queria o Bolinha de volta, pai.
- Ele não vai voltar, aprenda isso. Mas posso trazer outro igual ou melhor que ele. Quer outro coelho branco?
- Não. Acho que quero um cachorro. Coelhos viram estrelas. Não quero mais.
- Tá bem. Amanhã trarei um lindo cachorrinho para você.
E assim foi.
No dia seguinte o pai de João chegava em casa trazendo um filhote de pastor alemão.
O menino ficou contente e deu a ele outro nome. O pequeno cãozinho se chamaria Leão.

Naquela mesma época, a avó paterna do menino também ficou doente. Demorou mais que Bolinha, mas também virou estrela.
João não chorou.
Afinal, já era homem, dizia o pai.
Mas achou estranho quando viu o pai chorando do lado de fora da casa, sozinho. Não teve coragem de perguntar porquê, mas no fundo achava que era porque a vovó tinha virado estrela. Era muito ruim quando Deus as transformava. Quem precisava de estrelas?. A lua já iluminava bastante a noite. Era melhor que todo mundo vivesse ali, perto de quem se ama, pensava. Dá pra viver sem estrelas, mas sem Bolinha e vovó era bem mais difícil.

João nem chegou a vê-la quando estava doente, então não conseguiu perguntar se estava com medo de virar estrela. Também teria pedido pra vovó levar um recado para o Bolinha, mas não deu tempo.

Foi aí que decidiu conversar com Leão. Explicou para ele que quando fosse virar estrela devia antes avisá-lo para que ele pudesse se despedir.

Leão e João foram amigos inseparáveis por muitos anos. Quase doze.
Ele estava com 17 anos quando outra coisa muito ruim aconteceu.
Leão envelheceu.
Já não acreditava que ele viraria uma pequena estrela no céu. Sabia que a mãe inventou aquela história para ele parar de chorar.
Mas isso era ainda pior, porque estava convicto de que nunca mais poderia ver Leão... nem mesmo no céu, iluminando a noite.

No dia em que o cão morreu, João estava perto dele.
Não chorou.
Enrolou um pano no animal e o enterrou num terreno perto de casa, com a ajuda de seu pai.

Os anos se passaram e o rapaz tornou-se um bonito homem. Conheceu uma garota especial e decidiu que se casaria com ela. Em pouco tempo formaram uma bela família, com dois garotos saudáveis, que enchiam a casa de alegria.
Quando as crianças completaram quatro e cinco anos de idade, ganharam dois cachorros e passavam boa parte do dia correndo pelo quintal com os animais, chegando até o ponto de exaustão...

Mas a vida de tempos em tempos teimava em mostrar dificuldades.
Foi quando a mãe de João ficou doente. Já não se lembrava das pessoas à sua volta, só dos netos. Estava com Mal de Alzheimer, diziam os médicos.

Seu marido, sofrendo bastante, pensou no que fazer, chamou João e informou, resoluto, que iria internar sua mãe numa clinica para idosos. João ouviu a idéia, pensou um pouco e, por fim, concordou. Não tinha condições de cuidar da mãe em sua casa.
Precisava trabalhar para sustentar sua família. Além disso, seria deprimente para os meninos conviverem com a avó adoentada, usando fraldas e comendo com a ajuda de enfermeiras. Eles precisavam ser poupados daquele sofrimento todo.

A avó não mais viu os netos, embora continuasse a chamá-los pelos nomes, todos os dias. João a visitava vez ou outra, mas ela não o reconhecia. Só chamava pelos netos. Em vão.

Dois anos após a internação dela, foi o pai de João que ficou doente. O filho julgou que era por causa da tristeza. O coração do velho homem começou a dar sinais de falha.

Internado em um belo hospital da cidade grande, o pai de João recebia os cuidados médicos necessários. Porém, eram poucas as visitas. Praticamente só João aparecia para vê-lo, pois seus outros parentes moravam longe.

O velho homem, bastante entristecido, com os olhos já fundos, cansados das lutas da vida, passava as noites acordado, pensando.
Nunca pensou tanto em sua vida.
Olhava para a parede branca e pensava, pensava...

Certa noite desejou ardentemente rever sua esposa, dizer o quanto era agradecido por sua dedicação e carinho. Mesmo que ela nada entendesse, não importaria. Ele precisava dizer...
Depois pensou de como seria importante contar para o filho que ele era muito amado, que se orgulhava dele, por seu um homem bom, um bom marido, um bom pai... Também gostaria de dizer para os netos que homens choram sim, que devem chorar se sentirem vontade...
Quando pensou nisso, desabou em lágrimas.

Na manhã seguinte o telefone de João tocou.
Era bem cedo quando seu pai faleceu.

Tentou ser prático ao telefone: perguntou onde poderia comprar um bom caixão, quem levaria o corpo até o velório, como deveria cuidar dos documentos, etc.
Desligou o telefone, deu um suspiro e olhou à sua volta, procurando pelos filhos.
A casa estava quieta. Deviam estar dormindo.

Abriu a porta da cozinha, sentou-se na varanda da casa e, segurando a cabeça com as mãos, chorou.
Chorou como a muito não fazia...

João não viu, mas atrás da porta quatro pequenos olhos brilhavam, espantados. Seus dois meninos, quietos e atônitos, olhavam pela fresta.
Tinham ouvido o telefone tocar e parte da conversa. Sabiam que algo muito triste devia ter acontecido.
E comentaram, baixinho:

- Deve ser porque o vovô virou estrela...

* * * * * * * * * *

Algumas reflexões acerca do luto e seus desdobramentos...

1. A tendência à banalização da morte e do morrer é uma triste realidade que pode ser verificada em todos os meios de comunicação. Nos cinemas, na TV, nos jornais, o destaque surge para o 'morrer como espetáculo', num desfilar de 'desgraças' que nem de longe nos fazem refletir sobre o fato em si.

Outro ponto - o mundo científico trouxe grandes avanços para a humanidade, mas, como consequência, uma dura realidade se revela: não há lugar para as expressões de sofrimento, dor e morte. Esta realidade já é visível nos grandes centros urbanos, onde os ritos e espaços que possibilitam a integração e a reflexão sobre a morte são pouco valorizados. Como resultado, temos o que chamo de ‘inércia filosófica’. Não nos permitimos pensar na morte e, com isso, não pensamos em nosso modo de viver. Ficamos fixados no tempo presente, levando cada dia como se a nossa própria finitude não fosse a única certeza na vida.

Entrar em contato com a morte nos obriga a encontrar um outro sentido para a vida, mas também nos leva a buscar o da morte.

João não aprendeu a lidar com a questão da finitude, uma vez que nunca pode verdadeiramente deparar-se com seu próprio sentimento diante dela. “Homem não chora”, dizia seu pai. Portanto, homem não deve sequer sentir. Com isso, perdeu-se a oportunidade do fechamento de ciclos naquela família, dos reajustes tão importantes neste momento decisivo, tanto para os que partem, como para os que ficam por mais tempo na Terra.
A não aceitação da morte e do morrer acaba por embotar a elaboração do luto, a aceitação do fato, a reconstrução dos significados. Passa-se do fato 'morte' para outros fatos, sem que se reflita sobre eles, desperdiçando, portanto, valiosas oportunidades de aprendizado.

A pesquisadora Maria Cristina Mariante Guarnieri, em sua tese de Mestrado intitulada Morte no Corpo, vida no Espírito - o Processo de Luto na Prática Espírita da Psicografia afirma que "No Ocidente tem predominado a idéia de morte como algo absurdo, insensato e como forma de punição. Fruto da secularização, o enfrentamento da dor, do sofrimento e da morte tem se transformado intensamente, caminhando para um distanciamento e para uma negação a tudo que se opõe à felicidade, à realização e à eficiência". (GUARNIERI, 2001)

* * * * * * * * * *

2. Para nós, Espíritas, o morrer nada mais é que uma passagem. E esta passagem, este momento, pode ser mais ou menos difícil, dependendo, sobretudo, do Espírito desencarnante.
Almas que se dedicaram ao bem, podem desprender-se com maior facilidade de seus corpos, embora saibamos que, enquanto residentes deste planeta de provas e expiações, o período de perturbação do Espírito varia, mas é presente na maior parte das experiências do morrer do corpo e conseqüente desprender da alma.
Espíritos especialistas no desencarne nos visitam na intenção de prestarem auxílio neste difícil processo. O desligamento dos nossos liames exige técnicas específicas e harmonia na tarefa.
Porém, o que vemos nos velórios?
Grupos de pessoas com os mais variados comportamentos:
· Alguns choram convulsivamente; gritam em pleno desespero da alma desequilibrada.
· Outros contam anedotas, falam do defunto com malícia ou ainda descambam para a maledicência.
· Existem os que trazem as notícias do dia-a-dia, contando aos conhecidos as ultimas novidades da novela, da família ou do trabalho.
· Podemos ainda relacionar aqui os que se deslumbram com o fato da morte que retirou o Espírito do cenário, contando e recontando a causa da morte, como se aquela alma se resumisse apenas ao fato desencadeante do desenlace.
· Poucos se dedicam na formulação de orações para auxílio, preces dedicadas ao Espírito e aos benfeitores que atuam neste momento, auxiliando no processo.
Leituras edificantes e musicas inspiradoras são tão raras quanto os que se mantêm em posição de respeito e moderação.


Certo é que, se dependesse da ajuda dos encarnados no velório, o Espírito ficaria ali por tempo ilimitado.


No livro Cartas e Crônicas, Humberto de Campos nos traz uma interessante carta escrita por um desencarnado que, por azar, morreu no dia de finados. Conta ele que, na hora de se despedir dos parentes, viu-se às voltas com inúmeros desencarnados que se achegavam no cemitério, sedentos de cobranças, picuinhas, lutas de família, reclamando cuidados, vinganças, etc. O pobre coitado tentava em vão se achegar aos seus. Os que se reuniam em torno do enterro em nada lhe ajudavam.
Desabafou ele, aos que lessem aquela carta, que orassem para nunca desencarnarem em dia de finados, tamanha bagunça se dá nos cemitérios, e que se peça que, de preferência, seja qual for o dia do desenlace, que chova torrencialmente, pois quanto menor o numero de pessoas no séquito, melhor.

Certamente porque, infelizmente, o padrão mental dos que ali estão em nada ou quase nada contribui na obtenção de equilíbrio do Espírito e de seus familiares.

* * * * * * * * * *


3. Um terceiro aspecto a se pensar sobre perdas é o fato de que o luto pode ocorrer não apenas com a morte de alguém significativo, mas com a perda de alguma coisa, algo a que se dedica o coração.
Jesus, no maravilhoso Sermão da Montanha, afirmou-nos que onde colocamos nosso tesouro, ali estará nosso coração. Tamanha verdade tem tudo a ver com o luto:
Se colocamos nosso olhar, nossa expectativa nos bens materiais, certamente o luto que experimentaremos com a perda destes bens será bastante complicado. E o pior – nunca sabemos quando teremos de abrir mão de todas estas coisas passageiras. Quanto antes pudermos nos desapegar, melhor.

Viver na Terra usando a matéria não significa nem escravizar-se, tampouco esbanjar. Equilíbrio nas relações com os bens é caminho mais tranqüilo.

E o mesmo vale para com as pessoas.

Certamente levaremos nossos sentimentos para o Além Túmulo, mas precisamos saber que ninguém nos pertence e não pertencemos à ninguém. Talvez tenhamos de ficar por longo período distanciados daqueles a quem amamos, sem contudo deixarmos de nutrir por eles o nosso mais sincero sentimento fraterno.

O Divino Mestre nos alerta para que ajuntemos tesouros no Céu.

Quando nos dedicamos ao entendimento das coisas do outro mundo, nossa fé se fortalece, a certeza da bondade Divina nos auxilia e passamos pela experiência da separação transitória mais equilibrados.
Certo é que sentiremos saudades.
Afinal, como já dizia uma criança que estava prestes a partir deste mundo por causa de uma doença grave, “saudade é o amor que fica”...
Mas saberemos aguardar a vontade do Pai, pois teremos a certeza de que, no devido tempo, todos nos reuniremos para comemorarmos as vitórias individuais e coletivas.

Nenhum comentário: