terça-feira, 15 de maio de 2012

Da ignorância, da crítica e da ação – os três estados possíveis do Ser

Por Claudia Gelernter

Pensando no que é obvio, o que podemos dizer é que, de repente nascemos, vivemos e, por fim [e já que não tem outro jeito], morremos.

No meio do caminho, aprendemos muitas coisas, trabalhamos bastante e, quando o roteiro é mais tranquilo, conseguimos viver lindas histórias de amor, começando com a mãe da gente, depois com o pai, com alguma paquera da escola, desaguando no par que elegemos para passar muito tempo ao nosso lado. Se tivermos, então, a alegria de ver nascer um serzinho de dentro de nós, aí a aventura fica mais animada: a gente ri e chora, se preocupa e se alegra, endoidece e se delicia. Isso porque ter filhos é a melhor maneira de se descobrir como se pode viver sentimentos conflitantes e, no final, ainda se dizer feliz por isso. Um paradoxo.

 Continuando nesta empolgante aventura, eis que, num determinado momento, nos damos conta de que tudo parece decair: nossa pele, nossa barriga, nossa memória... até mesmo nossa opinião parece ser incluída no hall das decadências. Os mais jovens – aqueles que sempre se acham os maiorais do mundo – não costumam dar atenção aos mais velhos e, portanto, mais sábios que eles - triste realidade da sociedade ocidental, diga-se de passagem.

Acontece que, se por um lado podemos fazer uma lista das tantas decadências, temos, em contrapartida, muitas conquistas inalienáveis – as aprendizagens, as ações positivas, aquilo que amealhamos durante esta magnifica jornada chamada vida. Não é a toa que ouço tantos idosos dizendo que não trocariam de lugar com jovens de 20 anos, pelo simples fato de que no hoje se sentem leves, tranquilos, completos. Perde-se no corpo, porém, ganha-se na alma.

E é nesta linha de raciocínio que pretendo seguir. Quero explicar, a partir de agora, sobre aquilo que chamarei de estados possíveis do Ser e farei isso usando da mesma lógica, dentro de uma temporalidade, ou melhor, dentro de um determinado processo de desenvolvimento, no qual podemos dar passos largos entre um e outro estado, ou, ao contrário, demorarmo-nos demasiadamente em um dos dois primeiros estados [ou nos dois], prejudicando, assim, a nossa evolução.

Sim, porque tem gente que teima tanto com a vida, se revoltando contra a dor, sem nada aprender com ela, que só faz aumentar o problema.

Sobre isto, costumo dizer que a dor é como mulher na TPM: Se ela aparece e não nos esforçamos em ouvi-la e compreende-la, os resultados podem ser catastróficos. A coisa vai tomando uma proporção que fica bem mais difícil de suportar. Melhor ter paciência, logo no inicio, e ir já de cara analisando o que é que ela está querendo dizer, mesmo sem dizer nada de forma objetiva.

Compreenderam? Algo me diz que sim. Vamos, então, ao tema em questão.

São três os estados possíveis do Ser. O primeiro deles é o da ignorância. O segundo, o da crítica. Por fim, o terceiro e ultimo, chamarei de estado da ação. Todos os três compreendem infinitas possibilidades e por vezes se misturam, de acordo com a experiência do sujeito e da forma como ele percebe e reage a tais experiências.

O primeiro dos estados, o da ignorância, tanto pode ser pensado sob a ótica da nossa criação, como sob o enfoque da vida atual, nesta encarnação. Para melhor me explicar, retomemos alguns conceitos.

De acordo com a Doutrina dos Espíritos, aprendemos que fomos todos criados simples e ignorantes, ou seja, no inicio não tínhamos nem consciência, nem linguagem, nem nada. Tínhamos, contudo, o chip da perfectibilidade, portanto, o arsenal básico para darmos o primeiro passo na direção desta indescritível maratona que chamamos evolução.

Nesta fase, vivenciamos o estado de total ignorância. Somos como a lagarta que nem sonha com asas, ainda. Tocamos os dias, ou melhor, somos tocados pelos dias, tendo de batalhar pelo básico, precisando descobrir, a cada erro e a cada acerto, o que precisará ser feito para se sobreviver. E só.

A partir desta linha de largada, seguimos adiante, em diversas encarnações, juntando caquinhos que, com o tempo, passaram a formar um bonito mosaico de conhecimentos.

Vamos, passo a passo, entrando num segundo estado, bastante diferente do primeiro, não por ser melhor que o anterior, mas por promover imenso desconforto, uma vez que traz, em seu bojo, a marca da responsabilidade associada ao saber. Eis o estado da crítica.

Chamo de crítica, não aquilo que falamos de mal no outro, nas situações ou coisas, mas um estado no qual passamos a ter um olhar diferenciado, com um saber que nos dá a base para nos destacarmos do senso comum. Crítica no sentido de discernimento entre o certo e o errado, entre o bom e o mau, entre o coerente e o incoerente, e por aí vai. Quando passamos a marca na qual está definida a passagem de um estado de ignorância para um estado de crítica, muita coisa passa a fazer sentido. Inclusive nosso próprio sofrimento que se agiganta a cada novo saber.

O mosaico aumentou até o ponto no qual já podemos ver algumas coisas interessantes e aterrorizantes. O desenho nos mostra, primeiramente, que sabemos muito pouco das coisas, que temos muito a aprender ainda. E isso, no inicio do estado da crítica, pode ser terrível, pois impacta sobre nossas disposições orgulhosas acerca de nós mesmos. Freud chamou isso de ferida narcísica – uma dor terrível que surge, quando o homem descobre, finalmente, que [incrível!] ele não é a ultima bolacha do pacote.

A incompleta imagem nos informa, também, que muita coisa está errada no mundo e, pior, que muita coisa está errada dentro de nós mesmos. Mais uma ferida para ser tratada.

Se ousarmos analisar mais de perto esta construção artística [sim, porque viver é, essencialmente, uma arte], podemos descobrir que este mosaico depende, ainda, de peças trazidas de outros mosaicos, alheios a nossa vontade, e que poderão formar um desenho algumas vezes ilógico. Surpresos com as constatações anteriores, descobrimos que precisamos, apesar de tudo, ouvir a voz da fé, a nos dizer que é preciso confiar, mesmo que ainda não saibamos direito qual a nova peça que irá se encaixar neste contexto, porque seja lá qual for, é, com certeza, a melhor peça para melhorar o nosso desenho.

Portanto, não temo em afirmar que o estado da crítica é o mais difícil e temível estado do ser. Isso porque, se por um lado traz o otimismo de passos dados, de outro informa que já não dá mais para fazer de conta que não sabia sobre o assunto e que, por este motivo, errou. Trocando em miúdos: é este estado o de maior sofrimento, porque já sabemos, não mais ignoramos, porém ainda não fazemos. E nem sempre temos disposição para realizarmos aquilo que já sabemos. Eis a complicação.

Urge conseguirmos adentrar a próxima e mais interessante das fases: a do estado da ação.

Para conseguirmos isso, algumas receitas já nos foram passadas por alguns missionários que visitaram a Terra. Uma das que mais gosto diz que precisamos Orar e Vigiar. Aliás, não é a toa que o autor da receita se chamava Jesus. Ele foi, sem duvida, o maior especialista em alma humana que já passou pela Terra...

Orar e Vigiar.

A primeira parte é para conseguirmos manter contato com as esferas mais elevadas que nos ajudarão no sentido de darmos conta do recado. A segunda, diz respeito a uma espionagem íntima – ficar de olho no que andamos pensando e fazendo por aí.

Importante dizer que não existe melhor fiscal íntimo do que a gente mesmo: estamos sempre no local de trabalho, nossa chefa é uma moça atenta e justa, chamada consciência, e o salário é uma boa cota de paz. Porém, só recebemos o tal salário se conseguimos realizar esta receita a contento, claro.

Uma vez estando neste último e mais perfeito estado, passamos a ser a meta de outros tantos que se espremem psiquicamente dentro da fase anterior.

É nesta etapa que esvaziamos a angustia acumulada na fase da crítica. Aqui, já sabemos e já fazemos. Portanto, estamos em congruência entre o que sentimos, o que acreditamos e o que realizamos. Uma maravilha!

Sob o ponto de vista da evolução total do Espírito, tomando como base a escala produzida por Allan Kardec, em O Livro dos Espíritos, na Parte Segunda, item VI, esta fase seria a que pertencem os Espíritos Perfeitos.

Kardec classificou em três categorias, a totalidade dos Espíritos, afirmando, em contrapartida que, “esta classificação nada tem de absoluta: nenhuma categoria apresenta caráter bem definido, a não ser no conjunto: de um grau a outro, a transição é insensível, pois, nos limites, as diferenças se apagam, como nos reinos da Natureza, nas cores do arco-íris ou ainda nos diferentes períodos da vida humana.” Definiu que as três categorias representariam, a grosso modo, “três ordens” de Espíritos. A primeira diz respeito aos Espíritos Imperfeitos, com “predominância da matéria sobre o espírito, propensão ao mal, ignorância, orgulho, egoísmo, e todas as más paixões que lhes seguem. Têm a intuição de Deus, mas não o compreendem”. (item 101 do LE). Os da segunda ordem seriam os Espíritos Bons, “com predomínio do Espírito sobre a matéria; desejo do bem. Suas qualidades e seu poder de fazer o bem estão na razão do grau que atingiram: uns possuem a ciência, outros a sabedoria e a bondade; os mais adiantados juntam ao seu saber as qualidades morais. Não estando ainda completamente desmaterializados, conservam mais ou menos, segundo sua ordem, os traços da existência corpórea, seja na linguagem, seja nos hábitos, nos quais se encontram até mesmo algumas de suas manias. Se não fosse assim, seriam Espíritos perfeitos”. (item 107 do LE). Chamou de Espíritos Puros os da terceira e ultima ordem, sendo que eles já não sentem “nenhuma influência da matéria, com superioridade intelectual e moral absoluta, em relação aos Espíritos das outras ordens”. (item 112 do LE).

Perceba que existe diferença entre esta categorização básica de Kardec e a que tracei neste despretensioso artigo. Na do codificador, existe uma preocupação em determinar a evolução sob o ponto de vista geral, incluindo os saberes todos, sejam os de ordem moral ou de ordem intelectual. Já a minha tentativa é a de salientar apenas o estado do Ser, ou seja, de que forma ele se encontra naquele momento, estando em determinada ordem evolutiva. Estado seria, portanto, como ele apreende, sente e ressignifica as experiências evolutivas.

Ken Wilber, o famoso pensador e criador da Psicologia Integral, em seu livro Éden, Queda ou Ascenção, esforça-se por esboçar a curva da história humana, para embasar sua teoria de que viemos das feras, mas tendemos aos deuses. Wilber afirma que o futuro do gênero humano é a consciência de Deus. Porém, devido ao fato de estarmos acima dos animais e ainda a caminho do divino, por enquanto somos ‘figuras trágicas’, pois estamos equilibrados entre dois extremos, sujeitos aos mais variados conflitos, justamente porque não somos mais aqueles completos ignorantes e, por outro lado, ainda não somos sábios.

Sob o ponto de vista de uma única encarnação, percebemos que estes estados também podem ser percebidos. Quando crianças, ignoramos tudo. No inicio, nem sabemos o que somos, que tamanho temos, onde começamos ou terminamos. Com o tempo, vamos nos desenvolvendo e aprendendo muitas coisas, sendo que estas coisas vão aumentando em complexidade conforme nossa capacidade intelectiva. E a cada nova aprendizagem, um ponto a mais na carga de responsabilidade.

Quando aprendemos que cigarro mata, fumar torna-se um despropósito. Ainda assim, nem sempre conseguimos abrir mão do vício. E é aí que mora o problema, nascido da perda do estado da ignorância. Agora sabemos, mas ainda não fazemos.

Passo fundamental, o do conhecimento. Porém, nos pede um outro, complicado ainda, porque nem sempre temos pernas para tanto. É preciso esforço... e muito!

Com boa dose de boa vontade, vamos conseguir abrir mão do que nos faz mal – tanto a nós como aos nossos irmãos. Vamos dar conta de fazer aquilo que já sabemos.

Então, volto a destacar a receita que me parece ser a melhor de todas: Orar e Vigiar. Duas palavrinhas tão pequenas e que dizem tanto...

E, junto a isso, mais um importante ingrediente: aprender a se perdoar. Entender que estamos na trilha, mas ainda não conseguimos dar conta de todas as pedras do caminho. Existirão algumas que irão nos pegar de surpresa e aí vamos precisar ter paciência com a vida e conosco mesmo.

Após a pedra, a sabedoria. Quando conseguirmos transpô-la, saberemos exatamente como tornar a fazer isso.

Se Wilber disse que somos criaturas trágicas, porque sofredoras, não é menos verdadeiro que também somos criaturas amadas por Deus, com relativo progresso anterior.

O simples fato de podermos pensar nestas coisas já é sinal deste progresso.
Sigamos em frente!

Referências Bibliográficas:
KARDEC, Allan ; O Livro dos Espíritos. FEB, Rio de Janeiro, 1994
WILBER, K; Éden, Queda ou Ascenção?: uma visão transpessoal da evolução humana, Campinas, SP, Verus, 2010.


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