domingo, 12 de junho de 2016

Espiritismo – Mais Um Caminho Que Pede Coerência



Certa feita, Leonardo Boff teve a oportunidade de estar junto do Líder Espiritual Dalai Lama, em uma mesa redonda sobre religião e paz entre os povos. Naquela oportunidade Leonardo, maliciosamente, mas também com uma curiosidade teológica , decidiu fazer uma pergunta tendenciosa ao Dalai: - Santidade, qual a melhor religião? (Boff confessou que esperava escutar dele que a melhor de todas as religiões seria o budismo tibetano).
Com um sorriso sincero, Dalai Lama respondeu que "A melhor religião é a que mais te aproxima de Deus, do Infinito. É aquela que te faz melhor."
Então, para sair da perplexidade diante de tão sábia resposta, voltou a perguntar:
- "O que me faz melhor?"
Respondeu ele: -"Aquilo que te faz mais compassivo". Foi então que Boff sentiu a ressonância tibetana, budista, hinduísta, taoísta de sua resposta -  aquilo que te faz mais sensível, mais desapegado, mais amoroso, mais humanitário, mais responsável, mais ético...
A religião que conseguir fazer isso de ti é a melhor religião, portanto.
Desta maneira, e até por concordarmos com tal linha de pensamento, por sua coerência e amplitude, iniciamos este artigo dizendo o mesmo – que existem muitas maneiras de chegarmos até Deus, vivendo de forma plena.
Aliás, acreditamos que a religião  não seja o único caminho: Yoga, filosofia e psicoterapia são algumas das possibilidades de alcançarmos relativo equilíbrio diante dos desafios da existência, tornando-nos seres melhores. Isso porque, estarmos próximos de Deus, não significa saber, crer e difundir a ideia de Deus, mas essencialmente aprender a amar, tornando-nos melhores. 
Sendo Deus amor (como nos ensinam as diversas religiões), quando amamos estamos em consonância com o sagrado que a tudo permeia. E para isso não precisamos de livros especiais, atos devocionais ou ritualismo, mas principalmente uma alteração profunda e constante em nosso Ser, que nos impulsione a um viver mais ético, de acordo com o que acreditamos seja o mais justo e honesto.

Portanto, enquanto Espíritas, podemos dizer sobre o possível caminho proposto por esta religião, mas sem o fanatismo que enceguece. Estamos cientes de que qualquer outra opção religiosa pode trazer amplos benefícios a seus seguidores, dede que  seus ensinamentos sejam positivos, e que sejam vivenciados de forma congruente, através de pensamentos, falas e ações.

1.   Espiritismo: De onde veio, a que veio e para onde vai?

Herculano Pires, em seu livro “Introdução a Filosofia Espirita”, comenta que “Fala-se muito em Espiritismo, mas quase nada se sabe a seu respeito. Kardec afirma, na introdução de "O Livro dos Espíritos," que a força do Espiritismo não está nos fenômenos, como geralmente se pensa, mas na sua "filosofia", o que vale dizer na sua mundividência, na sua concepção da realidade.” 
Ou seja, o que o Espiritismo propõe não é um contato constante com o mundo espiritual, embora este possa se realizar, com critério e discernimento, mas sim uma reflexão profunda a partir da ideia da preexistência e sobrevivência da alma, da questão da reencarnação e da evolução constante dos Espíritos. Só estes dados já deveriam ser suficientes para nos retirar do nosso marasmo existencial, impulsionando-nos a um movimento constante, em busca de melhoria interior e exterior. Falamos aqui da transformação do mundo através da nossa própria transformação, como já receitava Gandhi.
No mesmo livro continua explicando que “Os adversários do Espiritismo desconhecem tudo a respeito (de Espiritismo) e fazem tremenda confusão. Os próprios espíritas, por sua vez, na sua esmagadora maioria estão na mesma situação. Por quê? E fácil explicar. Os adversários partem do preconceito e agem por precipitação. Os espíritas em geral fazem o mesmo: formularam uma ideia pessoal da Doutrina, um estereótipo mental a que se apegaram. A maioria, dos dois lados, se esquece desta coisa importante: o Espiritismo é uma doutrina que existe nos livros e precisa ser estudada. Trata-se, pois, não de fazer sessões, provocar fenômenos, procurar médiuns, mas de debruçar o pensamento sobre si mesmo, examinar a concepção espírita do mundo e reajustar a ela a conduta através da moral espírita. ”

Desta forma, entendemos que o Espiritismo não é uma doutrina que se pretende tratar somente sobre mediunidade, romances psicografados ou médiuns estrela, mas sim uma doutrina que discute sobre nossa ação no mundo, de como devemos interpretá-lo, estarmos e sermos nele.

Outro ponto importante é sabermos como nasceu a Doutrina Espírita. Evoco o próprio filosofo para responder esta questão, pois muitos pensam que ela apareceu pela primeira vez com Allan Kardec, mas não. Herculano nos alerta que “O próprio Kardec nos diz o contrário. Os dados históricos nos revelam o seguinte: o Espiritismo se formou lentamente através da observação e da pesquisa científica dos fenômenos espíritas, hoje parapsicologicamente chamados de fenômenos paranormais. Os estudos científicos começaram seis anos antes de Kardec, nos Estados Unidos, com o famoso caso das irmãs Fox em Hydesville. Quando Kardec iniciou as suas pesquisas na França, em 1845, já havia uma grande bibliografia espírita, com a denominação de neo-espiritualista, nos Estados Unidos e na Europa. Mas foi Kardec quem aprofundou e ordenou essas pesquisas, levando-as às necessárias conseqüências filosóficas, morais e religiosas.”

É com Kardec que entendemos a profundidade e amplitude da filosofia Espirita, com sua reverberação religiosa. O Espiritismo nasce na ciência, com as experimentações de contato com o mundo espiritual. Através da observação dos fenômenos mediúnicos, chegamos `as conclusões filosóficas, com suas reflexões particulares (e ao mesmo tempo universais, dada a confluência de suas ideias com outras linhas de pensamento). Colocando tal filosofia em ação, convergimos, por fim, em uma religiosidade positiva, capaz de nos elevar, nos conduzir aos braços amorosos do Pai, num trajeto menos doloroso, mais inteligente, portanto.

Então, o Espiritismo nasce com o firme propósito de nos tornar seres melhores. Mas, para onde será que caminha o próprio Espiritismo? 
Embora possamos manter o desejo de que esta rica filosofia continue progredindo, como nos pedia o próprio Kardec, mantendo seus axiomas, verdade é que, dependendo das intepretações e práticas, sérios riscos se fazem presentes.
Esta questão é delicada, e faz-nos revisitar a própria história do cristianismo.
Após a partida de Jesus, o que ficou de seus reais ensinos, poucos séculos depois, não foi o suficiente para conter a tendência perniciosa dos humanos, em geral. Passamos a interpretar os escritos da Boa Nova com nossas lentes embaçadas, usando pequenas frases dos textos como combustível para perseguições, exclusões, marginalizações, manejos de poder, etc. Até hoje vemos diversas correntes fanatizadas, com sua mentalidade cristalizada no ego narcisista, acreditando-se verdadeiras, embora cheias de contradições.
E o Espiritismo, embora filho do Iluminismo, do pensamento racional e progressista, não foge deste perigo. Na atualidade, em nosso país, percebemos uma tendência igrejeira (termo bastante utilizado pelo próprio Herculano); os núcleos espiritistas por vezes elegem médiuns e alguns palestrantes como se fossem os oráculos sagrados, centro de todo o saber, dada a possibilidade de contato com os Espíritos. Esquecem-se de que, assim como nos explica Kardec, precisamos ter muita cautela com todo material que nos chega através deste meio de comunicação, dada as dificuldades existentes, tanto aqui como lá, seja no quesito influência do médium nas comunicações, ou mesmo quanto a capacidade moral e intelectual do Espirito comunicante. Ademais, esta adoração, esta mitificação de tais médiuns torna-os aparentemente infalíveis, bloqueando nossa capacidade de uso do crivo da razão.
Outro ponto questionável diz respeito a adesão a práticas alheias ao próprio espiritismo (nada contra estas, mas acabam por misturar conceitos, muita vez tendendo ao místico, algo não condizente com a proposta da doutrina), ao ritualismo, com uso de vestimentas específicas, cantos, determinadas cores, imagens, etc.
Citando apenas estes pontos (deixando outros de lado, dada a extensão do tema) já podemos perceber que sim, existem riscos quando analisamos e nos questionamos  “para onde vai o Espiritismo”.
Cabe a nós, Espíritas, o estudo constante de seus postulados. Ler Kardec, por Kardec. Estuda-lo, refleti-lo, comentá-lo.
Ademais, existe outro ponto a ser destacado, antes de finalizarmos este trecho: Além de estudarmos Kardec, precisamos contextualiza-lo em seu tempo, em sua cultura. Assim compreenderemos melhor o ritmo proposto por ele e os Espíritos, desde o início de seus estudos, até suas conclusões.
Kardec herda, na revolucionária França, o pensamento crítico de seu tempo. Influenciado por grandes pensadores, tais como Rousseau e Pestalozzi, não apenas dá corpo a uma filosofia libertadora, mas indica que esta esteja sempre de acordo com o pensamento crítico, lúcido, coerente. A razão deveria, então, caminhar junto com a fé.
Aliás, temos notícia de que, por diversas vezes, Allan Kardec contestou as informações que os Espíritos traziam, seja lá com qual nome assinassem as comunicações. Só aceitou como possível verdade (e sempre deixando-as à mercê do pensamento científico) conceitos que se repetiam em múltiplas comunicações, trazidas por médiuns diferentes (que sequer se conheciam) e tão somente se tais informações tivessem corpo, coerência e profundidade.
Percebamos, então, que compreender o que é o Espiritismo, seus desdobramentos e o que ele pode representar em nossas vidas não é algo tão simples quanto conversar com Espíritos ou frequentar uma Casa Espirita.

2.   Reverberações Da Doutrina Espírita
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Como comentamos, o Espiritismo nasce da experimentação cientifica, com um método particular, porém válido (o Espiritismo não conflita com qualquer uma das teorias científicas maduras). Entretanto, o que fala alto em nossos corações e mentes são os resultados destas descobertas: a filosofia que surge a partir do contato com os Seres Invisíveis. Através desta, percebemos que almas existem, preexistem e sobrevivem à morte do corpo físico. E são elas (além de Jesus e outros sábios da antiguidade, nas mais diversas culturas, ao longo dos tempos) que nos confirmam a realidade da reencarnação. Tal saber nos faz reconciliar com Deus. É notório que sem tal explicação, jamais poderíamos aceitar e existência de um sentido para a vida humana, tampouco a perfeição no Criador, ou Força Cósmica, como a queiramos chamar. Não teríamos como explicar as variadas injustiças que ocorrem no mundo, tampouco conseguiríamos aceitar ou mesmo compreender o sentido didático da vida na Terra. Mas a Lei da Reencarnação não existe apenas para nos reconciliar com Deus. Ela também nos esclarece o sentido evolutivo da existência. São os Espíritos que explicam que tendemos ao progresso, sempre, até conseguirmos chegar a uma perfeição relativa, quando gravitaremos em torno do Criador (como comenta Paulo, no final do Livro dos Espíritos), co-criando junto à Sua Sabedoria Infinita.
Além da reencarnação, compreendemos que a vida possui uma inteligência suprema, tendendo sempre ao bem, embora com suas vestimentas por vezes dolorosas. Por outro lado, a Grande Lei Universal nos convoca ao exercício do Amor mais elevado, começando por nós mesmos, inclinando-nos aos nossos companheiros de jornada, estendendo tal Amor a todas as criaturas (incluindo animais, vegetais, etc.). Se já descobrimos a necessidade de amarmos plenamente o Criador, tal tarefa torna-se impossível  se nos negarmos a amar suas criaturas. 
E, de posse destas “ revelações doutrinárias”, o que nos cabe realizar, cotidianamente?
Comecemos comentando o que não deve ser feito, a fim de evitarmos confusões e dores desnecessárias.
Por exemplo, os remorsos que nascem daquilo que ainda não conseguimos alterar em nós deve ser o primeiro a ser combatido em nosso psiquismo. Isso porque o remorso engessa o Ser, confinando-o a um eterno pagamento de contas ilusório, porque pautado apenas no sentimento de não merecimento. Acabamos por nos sabotar, acreditando-nos não merecedores de felicidade ou paz.
Devemos, então, integrar em nosso psiquismo as imperfeições que carregamos, deixando de odiá-las , entendendo-as como parte de nosso processo evolutivo.
Quando não aceitamos o que somos, muitas vezes negamos esta realidade, projetando em outros nossas mazelas ou mesmo nos atacando, desnecessariamente. É preciso um aprofundamento, no sentido de nos conhecermos mais amplamente, sem julgamentos descabidos para, só então, conseguimos ir alterando aquilo que não nos cabe mais, a partir de uma vivência congruente com a filosofia que ora abraçamos.
Lembremos que Espiritismo, em sua essência (assim como ensinam outras religiões) é Amor. E Amor é perdão, entendimento, busca, crescimento, respeito, mansuetude...


3.   Viver em Congruência com a Doutrina dos Espíritos.

Aqueles que leem o Espiritismo com atenção e compromisso, logo percebem seu caráter progressista, social e ético, para além das questões ligadas ao ego destacado do meio. Aliás, não existe ego totalmente destacado do meio, o sabemos, embora o capitalismo nos force a pensar o contrário.
Sendo assim, aquele que pretende se dizer Espírita, precisará ir além do sistema no qual está inserido, questionando-o, com frequência.
Jesus propôs um socialismo cristão, pautado na não-violência e amplamente discutido por Leon de Tolstói, em sua obra “O Reino de Deus Está Em Vós”. Outro escritor que traz esta reflexão é o próprio Herculano Pires, em seu fabuloso livro “ O Reino”.
Aliás, este conceito foi vivenciado por Gandhi, na Índia (O líder hindu foi bastante influenciado pelo pensamento de Tolstói, tendo mantido contato com ele, através de correspondências, até a morte do escritor russo).
Por outro lado, e ainda falando sobre não-violência, assim como escreveu a jornalista Eliane Brum, em seu artigo a respeito da escravidão animal, já não podemos mais fazer de conta que não sabemos das coisas. Em ótimo (e urgente) texto, a repórter e comentarista do jornal El Pais e da Revista Época, afirma que “O tempo das ilusões acabou. Nenhum ato do nosso cotidiano é inocente. Ao pedir um café e um pão com manteiga na padaria, nos implicamos numa cadeia de horrores causados a animais e a humanos envolvidos na produção. Cada ato banal implica uma escolha ética – e também uma escolha política. Comemos, vestimos, nos entretemos, transportamos e nos transportamos à custa da escravidão, da tortura e do sacrifício de outras espécies e também dos mais frágeis da nossa própria espécie. Somos o que de pior aconteceu ao planeta e a todos que o habitam. A mudança climática já anuncia que não apenas tememos a catástrofe, mas nos tornamos a catástrofe. Desta vez, não só para todos os outros, mas também para nós mesmos. ”  Seguindo esta trilha de pensamento lógico e inquestionável, percebemos que, embora a dor da constatação, precisamos urgentemente questionar o que temos feito a nós e ao mundo que nos cerca, sob risco de termos mais pesadas dores no campo consciencial, post mortem.
Mas nossos olhares não podem se voltar apenas para as questões ambientais ou de especifismo. No campo de nossa própria sociedade existem discrepâncias e atrocidades que não nascem apenas por conta de má vontade política ou corrupção de governantes, mas por descaso e omissão do povo.

O que nos pede, então, o Espiritismo, vivenciado até suas últimas consequências?
Nada diferente do que já nos pedia Jesus:

a)    Luta incessante contra o Orgulho e o Egoísmo, chagas vivas no peito da humanidade, causa primeira de todos os nossos males.
b)   Desapego material, percebendo a vida na Terra como caminho e não como fim último. Desapego emocional, entendendo-nos como irmãos e não como possuidores uns dos outros. Desapego psíquico, percebendo que a Lei de impermanência também fala através de nossas próprias vidas, seres em transformação que somos. Desapego ideológico, revisitando antigas crenças, alterando-as, sempre que necessário.
c)    Aceitação constante, diante do que a vida se nos apresenta, buscando melhorar o que for possível, entendendo nossa pequenez diante da Sabedoria Suprema do Criador.
d)   Confiança nos movimentos da Vida, em seu propósito didático, evolutivo, amoroso.
e)    Gratidão constante a tudo e a todos, compreendendo que nos fazemos em sociedade e que somos seres naturais, reconhecendo a questão da interdependência, trabalhando por um Planeta mais justo e melhor.
f)     Amor, perdão e auxilio a nós mesmos e a todas as Criaturas que nos cercam.

Se buscarmos realizar estas poucas questões ao longo de nossas vidas (estas levam a outras, certamente), com paciência e determinação, estaremos vivendo de acordo com o que nos propõe o Espiritismo. Não é impossível, embora não seja fácil. Mas é preciso começar. Não porque a Doutrina nos ensina, mas porque tais ensinamentos são um valioso caminho de paz e alegrias constantes.



Referências Bibliográficas:


KARDEC, A.  O Livro dos Espíritos. Trad. Guillon Ribeiro, 43ª ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.

Link para artigo da jornalista Eliane Brum:

Link para o livro de Leon Tolstói: “O Reino de Deus Está em Vos”: https://we.riseup.net/assets/160463/1249581-Leon-Tolstoy-O-Reino-De-Deus-Esta-Em-Vos.pdf

Link para o livro “Introdução `a Filosofia Espírita” de Jose Herculano Pires: http://www.espirito.org.br/portal/download/pdf/introducao-a-filosofia-espirita.pdf




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