domingo, 3 de março de 2019

A Criança que Vive em Ti

Talvez o maior e mais importante trabalho de nossas vidas, seja resgatar a criança que deixamos esquecida, lá no fundo obscuro do nosso inconsciente; estática no corpo, mas ativa e intensa nas emoções. 

Aquela que soltamos da mão, no começo da estrada e que nos aguarda, solitária, mal cuidada, ignorada de nós mesmos. A criança que foi moldada pelas instituições por onde passou, que foi uniformizada, podada, enxertada, magoada. Que foi levada para um lugar distante dela mesma: um lugar de medos e cobranças.

Sim, talvez tenha recebido afeto. Mas não só.

Também disseram que ela deveria acumular posses, deixando de lado sua humildade, sua simplicidade; que precisaria criar artifícios, para depois se perder neles.  Se tornar competitiva, vaidosa, dissimulada. 

Mas a criança não quer mais isso. Jamais quis. 
E, vez ou outra, berra para que cuidemos desse assunto fundamental. 

Jean-Jacques Rousseau, em sua obra Emílio - uma referência para educadores - escreveu que a criança nasce boa das mãos de Deus, mas que a sociedade a corrompe. 
Disse isso logo na primeira frase do livro! 

As vezes penso que ele estava com um grande mal estar na garganta. Acho que não conseguia mais digerir este bolo feito de ingredientes ruins, e acabou tendo um regurgito emocional, cuspido através da pena, logo começou a escrever. 

Um estorvo na alma que precisava ser colocado no mundo provavelmente porque tinha a ver com aquilo que sofreu na infância, mas que também sobre o que fez sofrer, ao abandonar seus filhos (reais) em orfanatos. 

Dá o que pensar…

Se você retornar nesta estrada e se encontrar com a criança que foi um dia, pode ser que ela te olhe brava (ou, quem sabe, chorosa?) e diga que não queria ter seguido pelos atalhos que escolheu, tampouco pelos que te forçaram escolher. Que muitas vezes se sentiu sozinha, abandonada, sem forças nem direção. Que não entende porque deixou de escutar seu chamado, sem nunca mais voltar para dar-lhe colo e escuta.

Depois de desabafar, de chorar sua dor, quem sabe ela possa encontrar caminhos para te explicar sobre a cobrança que faz, vez ou outra, gritando no porão da tua alma estas coisas todas. Afinal, o que mais ela poderia fazer senão gritar por você, para que a ajudasse a encontrar a melhor porção dela mesma? 
Você é a única pessoa responsável por ela, agora!

Por fim, se tiver a coragem de escutar suas dores e espantos, talvez a criança poderá encontrar um espaço para também falar sobre sua leveza, sua alegria, seu entusiasmo pela natureza. Para dizer sobre algumas de suas vontades, que continuam presentes: descobrir coisas novas, ser confiante, entregue, feliz… 

Pode ser que ela te lembre do quanto foi bom cuidar de um cachorro, conversar sozinha com uma ave, subir na árvore para brincar de casinha. De como era maravilhoso sentir o perfume do bolo da avó ou sentar para ver um desenho animado, na volta da escola.

Do quanto era fundamental jogar bola, brincar na rua, desenhar a montanha… 

Se tiver a coragem de escutar o ruim, poderá ter acesso também ao bom dela mesma - saber da sua riqueza.


Curando sua criança, poderá acolher a melhor parte dela. E, então, na própria verdade de tua alma, recomeçar a vida, tocando os dias com a responsabilidade do seu Eu Adulto, junto da alegria e da fé imorredoura de sua criança, agora cuidada e feliz. 



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