sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Re-significar





Claudia Gelernter - claudiagelernter@uol.com.br
"Quando nos concentramos em esclarecer o que está sendo observado, sentido, é necessário, ao invés julgar, descobrirmos a profundidade de nossa própria compaixão.”
Marshall B. Rosenberg

Parece bobagem, mas até os menores comentários que fazemos muitas vezes são recheados de julgamentos, sejam eles provisórios ou preconceituosos.
A diferença entre o primeiro e o segundo está no fato de que o provisório (o nome já diz) muda conforme vão acontecendo os embates com a realidade; já o preconceituoso está enraizado na pessoa e por mais que se prove o contrário é muito difícil de ser alterado.
São aqueles indivíduos para quem a gente prova que água não é pedra, mas continuam jurando de pés juntos que se trata da mesma coisa.
Minha experiência, assim como meus estudos indicam que as pessoas só mudam seu olhar diante de certos fenômenos (sejam eles de qualquer natureza) quando são “tocadas”, quando mudam o sentido daquilo para elas.
Vai soar estranho, mas a palavra sentido aqui empregada tem um duplo sentido.
Um é o sentido da razão: aqueles valores que atribuímos a coisas ou pessoas usando nossa inteligência, nossa cognição, nosso conhecimento. O outro sentido é de sentir com o coração, sensibilizar-se com aquele tema.
Precisamos sentir diferente para mudarmos conceitos.
Rita, minha professora de Psicologia Educacional, certa vez contou uma experiência aos alunos muito interessante.
Era a história de um “menino marrom”.
Menino marrom porque chegava à escola de trator, junto com mais algumas crianças. Vinham todos pela roça. Seu uniforme era marrom, sua pele, seu tênis gasto, tudo.
Contou-nos ela que, num dia de rotina normal em que ela visitava a pequena escola de um vilarejo próximo à cidade de Assis, foi chamada às pressas, pois um pequeno menino, que na época devia ter uns oito anos, chorava há mais de uma hora e ninguém conseguia faze-lo parar.
A professora daquela sala precisou se ausentar depois de receber as crianças e corrigir os cadernos com as lições de casa, pois sua filha estava febril. Olhou os cadernos rapidamente, fez alguns comentários e foi para casa.
Rita se aproximou do menino que soluçava, inconsolável. - "Você está muito triste. Vou ficar aqui do seu lado até você parar de chorar. Daí, se quiser me contar porque está chorando, talvez eu possa ajudá-lo".
Passaram-se alguns minutos e ele tomou coragem:-" Minha professora falou que eu não gosto de estudar e que sou relaxado".
O menino tinha dificuldade para falar. Soluçava entre as sílabas.
"-Por que ela disse isso?"
"- Porque ela acha que eu não cuido bem do meu caderno."
E, pegando o pequeno caderno, totalmente orelhudo, entregou nas mãos de Rita.
Quando ela olhou de perto percebeu o que estava ocorrendo e fez um esforço grande para não emitir julgamentos.
De fato aquele caderno marrom, com enormes orelhas e manchado de água suja parecia pertencer a um menino bastante relaxado.
Mas ela segurou qualquer comentário e apenas perguntou:
- "Por que você está chorando tanto? Você gosta de seu caderno?"
"- Sim! Eu gosto tanto do meu caderno que levo ele comigo para todo lugar aonde vou! Se tenho de ir levar almoço para meus pais na roça, ele vai comigo; se vou brincar na mangueira, também! Nunca largo dele. Só largo à noite, para dormir. Daí penduro o caderno no varal".
Atônita, Rita questiona: "- No varal?"
"- É. No meu quarto tem um varal, pois é o único lugar onde o rato não pega. Em casa eu durmo de sapatos, tia, pois os ratos mordem meus dedos".
Rita finalmente compreendeu o que estava acontecendo ali.
Precisou segurar o seu próprio choro, desta vez.
Tratava-se de uma violência simbólica - a professora, ao ver o caderno sujo e com orelhas julgou o menino, dizendo que ele não gostava de estudar e era relaxado, quando na verdade era exatamente o contrário: por excesso de cuidados é que aquele caderno estava daquela forma.
Então ela ajudou o pequeno a encapar o caderno, deu-lhe um beijo e perguntou se ele queria que ela conversasse com a professora sobre aquele acontecido. O menino disse que sim, que gostaria.
Rita explicou à professora todos os detalhes e, com lágrimas nos olhos, pediu que ela compreendesse a situação.
Contou-nos, em aula, que a professora não apenas sensibilizou-se com a história do menino, como decidiu ajudá-lo em sua casa, pedindo para alguns vereadores que intercedessem e ajudassem aquela família, que, depois de um tempo, foi retirada do pequeno barraco, sem água encanada e nem esgoto, para outra casinha, em melhores condições.
Imagino, caro leitor, que existam dias em que você se sente como aquele pequeno menino marrom, ferido em suas fibras mais íntimas.
São aquelas situações em que você está tentando fazer o melhor possível, mas lhe julgam inapropriadamente.
Sei que é difícil, mas respire fundo e siga em frente.
Paciência.
Muitas pessoas cometem este tipo de erro.
Fica à nós o alerta para que tomemos cuidado com os julgamentos.
Mesmo os provisórios podem causar muitos estragos nas pessoas.
Imagine os preconceituosos...

2 comentários:

Leonardo Leão disse...

Pois é...preconceito é complicado mesmo...

Quando a gente segue um padrão comportamental, cultural, a gente tende a manter o status quo e, geralemente, se serve de preconceito.

Belíssima história a do menino marrom. Quisera todo "menino marrom" encontrasse "professoras" capazes de ouvir seu drama...

O mundo seria muito melhor.

Claudia Gelernter disse...

Olá, Leonardo.

A história do menino me levou às lágrimas em plena sala de aula.
Depois dele, em atendimentos de estágio escolar, pude conhecer outros 'meninos marrons', carentes de alguem que os auxiliasse.

Este tipo de preconceito enraizado pode ser percebido nas representações sociais. (teoria de Moscovici) Quando se vê, a maioria pensa de tal ou tal maneira. E ninguem sabe ao certo o porquê disso.

Uma conhecida minha cortava a gordura do presunto antes de fritá-lo. Quando questionada a respeito, respondeu que não sabia ao certo porque fazia aquilo, mas que sempre viu sua mãe fazer. Procurou a progenitora, levando a mesma pergunta e eis que ela respondeu: "Não sei porquê. Via sua avó fazer isso, então também corto a gordura antes de fritá-la".

Muitos de nossos julgamentos são baseados como elas fazem com a gordura do presunto. Não gostamos, não usamos, mas nem mesmo sabemos dizer direito porquê. Apenas seguimos aquilo que chamou de padrão comportamental cultural...