domingo, 17 de outubro de 2010

A nossa estrada de Damasco





Dentre as muitas histórias envolvendo a saga dos primeiros cristãos, existe uma que particularmente toca meu coração, tanto por sua força como por seu simbolismo - que, quando levado até aos dias de hoje, continua reverberando tenazmente em meu íntimo.

Trata-se da história de vida e lutas do conhecido Paulo de Tarso – o “São Paulo”, na concepção dos católicos.

Conta-se, sob a narrativa do venerando Espírito Emmanuel, através das mãos seguras de Chico Xavier, no romance histórico “Paulo e Estevão”, que o então Saulo, filho de um romano e de uma judia, nasceu ha 2000 anos, na cidade de Tarso, sob o teto de uma família de posses que, preocupando-se sobremaneira com a formação religiosa de seu rebento, logo que possível o enviou aos estudos religiosos. O pequeno Saulo estava destinado à carreira de rabino e freqüentou a escola anexa à sinagoga, onde aprendeu a síntese da Lei Mosaica, desenvolvendo profundo amor às tradições, baseadas na Torá.

Tornou-se um fariseu fervoroso, defensor da Lei e dos costumes de seu povo.

Naquela época, Jesus fora condenado à cruz e ao mesmo tempo nascia, das sementes amorosas espalhadas pelo Mestre, os primeiros movimentos do cristianismo primitivo.

Quando Jesus partiu para a Pátria Espiritual, após a crucificação de seu corpo, Saulo viu-se com um grande problema a ser resolvido: extinguir aquela seita que surgia, promovedora de perturbações - ameaça à pureza judaica. Como aceitar um messias, filho de humilde carpinteiro, que convivia com cobradores de impostos e prostitutas? Como acatar aquelas idéias perturbadoras que conclamavam o amor aos inimigos? Seria absurdo aceitar tamanhos disparates. Tomado por idéias aquecidas pelo fogo de sua fé cega, passou a perseguir cristãos, como se estes fossem os maiores inimigos da religião judaica.

Sob a pressão de suas convicções e o apoio de seus pares, mandava apedrejar indivíduos que se negavam a abjurar seu Mestre. Foi assim que, dentre outros, condenou Estevão à morte por lapidação: um homem de profunda sabedoria, com a coragem de sua fé inabalável, que foi conduzido ao apedrejamento carregando espantosa paz íntima - o que perturbou imensamente o coração de Saulo.

A cada dia ainda mais rígido, mais dogmático, decide perseguir o cristão Ananias, na cidade de Damasco, que ali trabalhava pregando o Evangelho de Jesus. Saulo, acompanhado por alguns companheiros, toma o rumo da capital Síria. Parte de Jerusalém, com o coração contraído pelas lembranças difíceis dos últimos tempos. Forte angustia assomara seu espírito. ‘Qual a força misteriosa que move os cristãos, que os faz tão serenos, apesar de nossas buscas?’ ‘Como conseguem esta paz, diante de tantas provas?’

Saulo vagava pelo mundo, como muitos de nós nos tempos atuais que, embora fortalecidos pela fé em um Ser Superior, em alguns momentos perdemos o “rumo”, a “meta”, ou, como me ensinou o professor Fábio Reis, perdemos nosso waypoint.

Waypoint é um determinado lugar em um mapa ou no mundo real e é usado em dispositivos do GPS para armazenar uma posição importante.
Quando aprendi a lidar com meu aparelho GPS, devido a necessidades náuticas, compreendi que o waypoint é como o ponto final da viagem, escolhido previamente. O aparelho então traça o melhor caminho para atingirmos este waypoint, mostrando-o em sua tela, fornecendo inclusive dados que incluem o tempo para a chegada, caso consigamos seguir a trilha proposta. Vale citar que quando nos perdemos do rumo, o GPS passa a sinalizar o problema (soa um alarme), sugerindo outras saídas para atingirmos o nosso objetivo da melhor maneira e em menor tempo.

Fazendo uma rápida analogia conosco, costumo dizer que fomos criados com uma espécie de GPS interior, onde o Waypoint seria a chegada ao nivel dos Espiritos Puros e a rota segura as revelações divinas, trazidas pela Espiritualidade ao longo da história humana. Quando derrapamos no caminho, nosso alarme interno soa em forma de dor física ou moral, ou ambas – é como se a angustia fizesse morada em nosso coração, e por vezes sem nenhuma razão aparente.

Era o que acontecia com Saulo naqueles tempos. Desejava ardentemente servir a Deus, mas se distanciava de seu objetivo quando perseguia seus irmãos do caminho.

Angustiado, toma a estrada de Damasco.

Aqui cabe uma pergunta: - Quantos de nós ainda permanecemos na Jerusalém da ilusão material, sem nos incomodarmos com os desvios do caminho? Quantos de nós mantemos nosso GPS desligado, por pura comodidade e preguiça? Vale refletirmos com nossos botões...

Dia virá em que a angustia abrirá suas asas sob todos os desatentos e os envolverá nas teias da tristeza, fazendo-os percorrer a longa estrada de Damasco...

* * *

Saulo, angustiado, seguiu pela árida estrada quando, às portas de Damasco, no auge de seus questionamentos íntimos, vê Jesus à sua frente. A visão era tão bela, tão forte que não conseguiu manter-se sob o cavalo, caindo no chão, pedindo socorro aos companheiros que nada entendiam, uma vez que nada podiam ver além do companheiro caído, sob as areias do caminho. Mas Saulo via. Via através dos olhos de seu Espírito, aquele ser iluminado, que, com os olhos divinamente entristecidos, fitavam o fariseu imóvel.

E Jesus lhe pergunta: — Saulo!... Saulo!... por que me persegues?

O rabino, atônito, sem forças para responder a dolorosa pergunta, questiona:

— Quem sois vós, Senhor?

Nimbado de uma luz maravilhosa e usando de um tom doce, responde o Mestre:

— Eu sou Jesus!...

Então o poderoso fariseu curvou-se ao solo, aos prantos. Compreendeu a verdade naquele momento. Estêvão estava certo. Os cristãos estavam certos.

Nada mais havia para ser questionado. Ali estava toda a verdade, que ele compreendeu em poucos instantes. De sua conversão instantânea surge, então, apenas uma última pergunta:

- Senhor, o que quer que eu faça?

Nada de desculpas, nada de pedidos, nada de dúvidas. Ele estava alí, pronto para seguir o chamado da luz. Foi como se de repente, diante de seu Espírito desorientado, aparecesse o roteiro preciso.
Jesus lhe pede que vá para Damasco e que aguarde novas instruções.
Neste ponto de nossas reflexões sugiro uma nova pergunta: - Quando defronte à verdade das Leis Divinas, como nos comportamos? Ficamos extáticos, como um verdadeiro “dois de paus” diante da novidade ou usamos o aprendizado para seguirmos adiante?

Saulo, logo após perceber a figura materializada do Mestre, fica cego. Mas isso não lhe impede de ir ao encontro de seu destino, em Damasco. Fechara-se a luz para os olhos do corpo, porém uma nova luz começava a ser percebida pelos olhos do Espírito. Seguiu para a cidade e, estando em uma hospedaria, recebeu Ananias, [o mesmo homem que perseguia] que, num instante repleto de simbologia, estendeu as mãos sobre suas vistas, devolvendo ao novo homem, a visão do corpo.

Acontece que muitos, ainda maravilhados com as revelações celestes, passam a existencia contemplando, adorando, sem perceber que não está alí o waypoint de sua existência, e que para o atingir é preciso muito trabalho, dedicação e boa vontade. Parar na estrada, em êxtase, encantado com a luz é marcar passo evolutivo.

Creio que trilhar a nossa estrada de Damasco é, entre outras coisas, encontrar-se com a fé, com o retorno aos propósitos maiores de nossa existência. É fechar os olhos do corpo para abrir os olhos do Espírito - o voltar-se para dentro de si, fechando-se para os apelos materiais.
É usar o externo para concluir a meta do interno, com amor.
É, ainda, e sobretudo, conversar com a dor, com a luz e consigo mesmo, para então, buscando entender as mensagens que chegam, retomar os passos, seguindo adiante, com outras disposições.

Desejo sinceramente que você encontre sua estrada de Damasco e que, estando nela, encontre a paz. E que, estando em paz, possa ser fonte de bênçãos para todos aqueles que cruzarem teu caminho, servindo de exemplo para os viajantes momentaneamente perdidos.

2 comentários:

Janela Espírita disse...

Querida Claudia!

Adorei o texto, vc escreve muito bem, de maneira a trazer para mais perto a história ao leitor.

Gostaríamos muito de compartilhar o Espiritismo com você!

Grande abraço,
Fernanda
Janela Espírita

Claudia Gelernter disse...

Obrigada,

Será um prazer compartilhar o Espiritismo com você, também, Fernanda! Vou conhecer seu espaço.
abraços!