Em se tratando de
saberes e ações humanas, não existe assunto que não possa (e não deva) ser
analisado sob o enfoque Espírita, uma vez que se trata de Doutrina fundamentalmente
filosófica, reflexiva, profunda, evolutiva e universal.
Como comenta o Dr.
André Luiz Peixinho (FEEB), se compararmos o mundo com um colar de contas, considerando
que cada uma de suas peças representa os saberes humanos (Medicina, Psicologia,
História, Filosofia, Arte, etc.), entenderemos que o Espiritismo não se enquadra
na posição de mais uma destas contas, mas sim como o cordão que as transpassa,
devendo ser considerado, portanto, ferramenta essencial para a análise de todos
os fenômenos por nós produzidos, sejam eles de ordem individual, social ou
ambiental.
Sendo como é [e a
partir dos pressupostos que nele se encerram], o Espiritismo nos convoca a um
pensamento racional, voltado à busca de respostas congruentes, de acordo com o
tempo histórico que vivemos e em comunhão com as ciências e padrões
ético-morais genuinamente cristãos.
Diante deste ponto
fundamental, sentimo-nos impulsionados a discutir, embora que de forma ainda
superficial, a questão do vegetarianismo como opção alimentar, e - mais que
isso – como uma ‘filosofia de vida’.
O vegetarianismo discutido em O Livro dos Espíritos
O Espiritismo nasce
para o mundo em abril de 1857, através de um livro contendo perguntas e
respostas, intitulado “O Livro dos Espíritos”. Nele, encontramos diversas
questões, referentes aos mais variados assuntos, respondidas pelos Espíritos
Superiores assim como por Allan Kardec que, de forma brilhante, enriquece a
obra com seus apontamentos lúcidos, coerentes.
Considerando a alimentação
um tema relevante, Kardec propõe a seguinte pergunta aos Espíritos:
723. A alimentação animal é, com relação ao
homem, contrária à lei da Natureza?
E os Espíritos
respondem:
“Dada a vossa constituição física, a carne alimenta a
carne, do contrário o homem perece. A lei de conservação lhe prescreve, como um
dever, que mantenha suas forças e sua saúde, para cumprir a lei do trabalho.
Ele, pois, tem que se alimentar conforme o reclame a sua organização.”
Se analisarmos esta
questão em separado de outras que se seguem e que serão destacadas mais
adiante, entenderemos que é lícito – necessário, até - que o homem se alimente
da carne animal a fim de conseguir as energias necessárias para a execução de seu
trabalho no mundo.
Entretanto, como
toda a obra Espírita genuína, não devemos e nem podemos prescindir do caráter
evolutivo dela mesma. Disse Kardec que o Espiritismo deveria ser revisto e
ajustado aos conhecimentos trazidos pela ciência humana, devendo caminhar de
mãos dadas com ela, desde que seus axiomas [do Espiritismo] não fossem feridos.
E, quais são estes
axiomas?
São, basicamente: o
amor como caminho; a evolução como meta; a razão como bússola e a reencarnação
como instrumento pedagógico.
Pois bem, em se
tratando de questões alimentares, sabemos que a ciência da nutrição é bastante
recente na história humana. Só em 1902 surgiu o Curso de nível Universitário na
formação de dietistas – os precursores
da nutrição - e é somente em 1946 que a Organização Mundial da Saúde (OMS), com
sede em Genebra, inicia a divulgação e execução de programas específicos
ligados à produção e estudos sobre alimentos, marcando o aperfeiçoamento
profissional da nutrição.
Portanto, não se
trata de ciência existente na época de Kardec. Sendo assim, seria impossível
aos homens encarnados naquele tempo o acesso aos conhecimentos nutricionais
necessários a fim de desvendarem as propriedades dos alimentos disponíveis na
natureza.
Só muito
recentemente esta ciência demonstrou que encontramos no reino vegetal todos os
nutrientes necessários para a promoção e manutenção de nossa saúde, sendo desnecessário
a uso de produtos de origem animal em nossa dieta cotidiana.
Portanto, entendemos
que seria leviano da parte dos Espíritos da codificação, afirmarem que o
Espiritismo condena o consumo de carne, pois as informações sobre as
alternativas nutricionais eram quase inexistentes naquele tempo.
Entretanto, isso
não se aplica nos dias de hoje.
Além deste fator,
devemos levar em conta o nascimento de outras ciências que, assim como a
nutrição, surgiram posteriormente à formação do Espiritismo e que dizem
respeito ao meio ambiente.
Cabe-nos, então,
seguir adiante no próprio Livro dos Espíritos, agora na questão 724 proposta
por Kardec:
724. Será meritório
abster-se o homem da alimentação animal, ou de outra qualquer, por expiação?
“Sim, se praticar essa privação em benefício dos
outros. Aos olhos de Deus, porém, só há mortificação, havendo privação séria e
útil. Por isso é que qualificamos de hipócritas os que apenas aparentemente se
privam de alguma coisa.”
Diversos estudos
sobre questões ambientais têm apresentado evidencias robustas de que o consumo
de carne animal acaba por gerar problemas de ordem ambiental, além de complicações
físicas para o consumidor.
Em pesquisa realizada
pela nutricionista Aline Martins de Carvalho, da FSP (Faculdade de Saúde
Pública da USP), descobriu-se que “o
consumo excessivo de carne foi verificado em grande parte da população
pesquisada, com aumento significativo ao longo dos anos, relacionado com pior
qualidade da dieta em homens e considerável impacto ambiental”. Concluiu
ainda, que “as carnes vermelhas e
processadas têm sido relacionadas com aumento do risco de câncer de cólon e
reto, doenças cardiovasculares, diabetes e ganho de peso” (p. 01,
2012). Tal dissertação resultou no
artigo científico “Excessive meat consumption in Brazil: diet quality and
environmental impacts”, publicado na revista científica inglesa Public Health
Nutrition.
O impacto ambiental do consumo de carne
Apontados como
grandes vilões do aquecimento global, a pecuária e o consumo de carne estão
sendo cada vez mais debatidos por biólogos, ambientalistas, vegetarianos, além
de diversos movimentos sociais.
Em entrevista
cedida ao Instituto Humanitas, o biólogo Sérgio Greiff explica que “A carne é responsável por grande impacto
ambiental. Áreas naturais (florestas, matas, cerrados, campinas etc.) precisam
ser devastadas para a abertura de pastos. Muitas pessoas associam a devastação
nas florestas tropicais ao corte de madeira. Na verdade, a contribuição das
madeireiras para essa devastação nem se compara à devastação causada pela
pecuária, pois as madeireiras selecionam apenas as árvores que interessam para
o corte. Já o pecuarista precisa se livrar das árvores indiscriminadamente”.
Diante destas evidências,
a resposta oferecida pelos Espíritos na questão 724 de O Livro dos Espíritos coloca-nos
em cheque, uma vez que deixa claro que a privação da carne em prol do coletivo
é relevante, meritória.
Levando-se em conta
que nos tempos de Kardec os conhecimentos sobre nutrição eram totalmente
restritos, privar-se de carne consistia, portanto, em ação grandiosa, altamente
altruísta. Porém, nos dias de hoje, com todos os recursos de que dispomos, entendemos
que tal ação sai do âmbito da ampla generosidade para tornar-se um dever.
Além disso, realizando
pequeno exercício filosófico, devemos alinhar nossos saberes com a questão de amarmos Deus acima de todas as coisas e ao
próximo como a nós mesmos. [ensinamento fundamental proposto pelo Cristo
como sendo o resumo da Lei e dos Profetas].
Como amar a Deus se
confinamos, privamos e matamos suas criaturas pelo prazer efêmero de nosso
paladar, ocasionando tantos transtornos à nossa volta?
Vegetarianismo e Espiritismo – um diálogo necessário.
Outra munição frequentemente
utilizada pelos Espíritas ainda defensores do carnivorismo apoia-se no fato de
que o médium brasileiro Francisco Cândido Xavier consumia carne, enquanto
encarnado.
Construindo suas
idéias em premissas infundadas, afirmam: “Chico
Xavier era carnívoro e Hitler era vegetariano, então...”
Com relação a esta
situação, temos alguns pontos a considerar.
Primeiramente, necessário
compreender que Hitler não se tornou vegetariano por questões morais, mas sim
por conta de um problema de saúde, na área gástrica, segundo seus biógrafos. Conta-se,
ainda que ele “roubava” carne da cozinha, costumeiramente, o que denota seu
conflito nesta questão.
Quanto ao médium, faz-se
necessário separar a obra ditada pelos Espíritos de suas ações, pois temos, ao
longo de seus escritos mediúnicos, inúmeros apontamentos em defesa do
vegetarianismo.
Vejamos:
O Espírito Irmão X,
em seu texto intitulado “Preparação para a Morte”, buscando cooperar com os
irmãos que logo mais atravessarão os portões do além túmulo, inicia dizendo
sobre a necessidade primordial de nos abstermos do consumo de produtos de origem
animal a fim de facilitarmos nosso ingresso no Plano Espiritual. Recomendou-nos
ele:
“Comece a renovação de seus costumes pelo
prato de cada dia.
Diminua gradativamente a volúpia de comer a
carne dos animais.
O cemitério na barriga é um tormento,
depois da grande transição.
O lombo de porco ou o bife de vitela,
temperados com sal e pimenta, não nos situam muito longe dos nossos
antepassados, os tamoios e os caiapós, que se devoravam uns aos outros.”
No livro Missionários
da Luz, capítulo 4, o Espírito André
Luiz, descreve o ambiente de um matadouro aos leitores, dizendo estar junto de
Alexandre, um benevolente instrutor, que o faz compreender a questão do vampirismo
espiritual, naquele caso resultante das ações criminosas dos homens junto aos
animais. Comenta o instrutor de André que
no futuro da humanidade o estábulo será tão sagrado quanto um lar terrestre.
Entretanto, comenta
que na atualidade, infelizmente “Os seres
inferiores e necessitados do Planeta não nos encaram como superiores generosos
e inteligentes, mas como verdugos cruéis”.
Oras, nem poderia
ser de outra forma, dada a maneira como tratamos estes seres.
Alexandre continua
seus ensinamentos, afirmando que nossos irmãos animais “aceitam o cutelo no matadouro, quase sempre com lágrimas de aflição,
incapazes de discernir com o raciocínio embrionário onde começa a nossa
perversidade e onde termina a nossa compreensão”.
E, colocando-nos de
frente com a questão paradoxal que nos envolve a existência, comenta:
“Se não protegemos nem educamos aqueles que o Pai nos
confiou, como germens frágeis de racionalidade nos pesados vasos do instinto;
se abusarmos largamente de sua incapacidade de defesa e conservação, como
exigir o amparo de superiores benevolentes e sábios, cujas instruções mais
simples são para nós difíceis de suportar, pela nossa lastimável condição de infratores da lei de
auxílios mútuos?”
Neste ponto
nevrálgico, relembramos a Oração Pela Paz, atribuída ao querido Francisco de Assis,
que nos convoca a sermos instrumentos de paz, de amor.
Parece-nos impossível
conseguirmos apoio do mais alto se nos posicionamos nas esferas mais baixas da
vida.
E, colocando-nos a
par sobre nosso papel diante desta urgente questão, afirmou que “(...) na qualidade de filhos endividados
para com Deus e a Natureza, devemos prosseguir no trabalho educativo, acordando
os companheiros encarnados, mais experientes e esclarecidos, para a nova era em
que os homens cultivarão o solo da Terra por amor e utilizar-se-ão dos animais,
com espírito de respeito, educação e entendimento”.
Neste trecho fica explicito
a convocação ao trabalho de educação dos seres, levando as informações de que dispomos,
a fim de alterarmos o cenário no mundo.
Prosseguindo com nossos
estudos, citaremos agora o Espírito Emmanuel, no livro “O Consolador”, com suas
explicações que, por serem longas, porém necessárias, serão copiadas abaixo, na
íntegra:
“A ingestão das vísceras dos animais é um erro de enormes consequências,
do qual derivaram numerosos vícios da nutrição humana.
É
de lastimar semelhante situação, mesmo porque, se o estado de materialidade da
criatura exige a cooperação de determinadas vitaminas, esse valores nutritivos
podem ser encontrados nos produtos de origem vegetal, sem a necessidade
absoluta dos matadouros e frigoríficos.
Consolemo-nos
com a visão do porvir, sendo justo trabalharmos, dedicadamente, pelo advento
dos tempos novos em que os homens terrestres poderão dispensar da alimentação
os despojos sangrentos de seus irmãos inferiores.”
Poderíamos destacar ainda
outros trechos de textos assinados por Espíritos que ditaram suas idéias
através de Francisco Candido Xavier, porém consideramos desnecessário, uma vez
que praticamente todos buscaram nos impulsionar para a mesma direção – a do vegetarianismo
consciente.
Entendemos, ainda, que o
fato de ter consumido carne durante sua última existência, em nada diminuiu a
grandeza do trabalho realizado por Francisco Cândido Xavier, que deixou
certamente vasto legado de informações e exemplos superiores.
Cabe-nos, entretanto, como
nos ensinava o mestre comum, Allan Kardec, seguir adiante, de mãos dadas com os
novos saberes que nos são apresentados, reforçados e confirmados por diversas
áreas do conhecimento humano.
Ademais, como destacado
anteriormente, o Espiritismo, em seu aspecto moral de justiça, amor e caridade,
sempre condenou os excessos. Uma vez comprovada a não necessidade da morte do
animal para nosso sustento, devemos trilhar outros caminhos, mais sensatos,
corretos, éticos.
Por fim, compreendemos que
a evolução do planeta passa, invariavelmente, pela questão alimentar.
Este salto, importante e
fundamental, ocorrerá a partir da mudança de cada um, reconhecendo nos animais
o próprio Criador em sua expressão de amor e benevolência.
E então, congruentes com a
Lei Maior, certamente trilharemos por caminhos mais tranquilos, repletos de
cooperação e crescimento.
Trabalhemos por isso!
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS:
CARVALHO, A. M.; Tendência temporal do consumo de carne no
município de São Paulo: estudo de base populacional – ISA Capital 2003/2008;
dissertação de mestrado; FSP – USP; 2012. Disponível em http://www5.usp.br/17464/estudo-da-fsp-relaciona-consumo-excessivo-de-carne-com-impacto-ambiental/acessado
em 21 de agosto de 2013.
HUMANITAS; O impacto ambiental do consumo de carne.
Entrevista especial com Sérgio Greif e depoimento de Sonia Montaño, disponível
em http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/10451-o-impacto-ambiental-do-consumo-de-carne-entrevista-especial-com-sergio-greif-e-depoimento-de-sonia-montano,
acessado em 19 de agosto de 2013.
KARDEC, A. O Livro dos
Espíritos, FEB, Rio de Janeiro, 1994 – Questões 723 3 724.
XAVIER, F. C.; O Consolador, por Emmanuel, Ed FEB, Rio
de Janeiro, 21ª edição, 1998.
_____________ Missionários da Luz, Espírito Andre Luiz, Ed. FEB, Rio de Janeiro,
2005.
_____________ Treino para a Morte, Espírito Irmão X,
Ed. FEB, Rio de Janeiro, 2002.
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